Olga Pombo, investigadora da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, convida-nos à leitura de Rousseau.
É uma bela síntese do pensamento do autor e que desperta o leitor para uma busca mais profunda, bastando seguir os links até às obras mais emblemáticas do pensador. Olga Pombo enfatiza a actualidade do pensamento de um homem que viveu à frente do seu tempo, conseguindo ver nele os sinais de um futuro que antecipadamente pensou. “As suas obras, de inesgotável riqueza, estão cheias de pressentimentos, alusões e pensamentos de notável actualidade.”
Evocar Rousseau é promover sentimentos contraditórios, não tanto pelos traços da obra mas, quiçá, pelas querelas ideológicas que buscam guarita nas ideias do autor. Mas não é isto que pretende Olga Pombo: “O (seu) objectivo é dar a ler Rousseau, dispersar a semente do prazer intelectual e estético que se retira da leitura dos seus textos. Mais especificamente, referir a multiplicidade de aspectos sob os quais Rousseau reflectiu e que entre nós continuam problematicamente activos, escutar o eco que ainda hoje a sua obra pode encontrar em quem a frequente com algum cuidado e percorra subjectivamente alguns dos múltiplos caminhos que ela deixa em aberto.” Da sua obra realça: “a contemporaneidade reflexiva e a multiplicidade temática e como essa multiplicidade não é senão aparente, como há uma intuição fundadora que lhe dá sentido e unidade.”
Quem é este personagem multifacetado?
Há depois o grande Rousseau pedagogo. […] Rousseau é o primeiro, ou pelo menos o mais veemente, defensor da diferença infantil. […] Mas Rousseau vai mais longe. Não só adopta uma perspectiva compreensiva relativamente aos valores da criança cuja diferença reclamadamente afirma, como a liberta da culpa de um pecado que sobre ela pesava desde a origem dos tempos. Se há algum aspecto em que a nossa gratidão para com Rousseau mais seja de realçar é, segundo creio, nessa sua violenta e apaixonada recusa de aceitar o postulado do pecado original.
[…]
Há também o Rousseau músico, professor de música.
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Há mesmo o Rousseau botânico, o apaixonado pelas plantas que cobrem a superfície da Terra. […] Paixão pela botânica que implica a condenação de todas as formas de exploração industrial ou industriosa dos seus segredos. O que permite falar de um Rousseau ecologista.
[…]
É que há também o Rousseau marginal, expulso e perseguido, sempre fugitivo, incansavelmente percorrendo a pele da Terra, nascido em Genebra, morto em Paris, vivendo aqui e ali.
[…]
Depois, há o grande Rousseau “écrivan”, escritor e poeta, autor de algumas das mais belas páginas da literatura francesa do século XVIII. […] Porém, falar do Rousseau
“écrivain”, não pode consistir apenas na referência aos seus mais belos textos
literários. É necessário reconhecer o apuramento formal de todos os seus escritos, a harmonia da letra, o ritmo das frases, a inquietante beleza com que comunica, tanto as impressões mais ocasionais, como os mais profundos pensamentos e sublimes intuições. Beleza imensa e pesada que dá ao seu texto um enigmático estatuto, difícil de classificar, impossível de encenar num dos comportamentos culturais. Texto literário sem dúvida! Texto mesmo que ajuda a literatura a tomar consciência de si própria. […] Digamos que Rousseau é demasiado bom escritor para ser apenas filósofo e é demasiado bom filósofo para ser apenas escritor. A beleza fascinante dos seus escritos perturba o acesso à claridade ideal dos seus conceitos mas, por outro lado, a profundidade dos seus pensamentos e o rigor dos seu sistema, inviabilizam uma leitura meramente literária da sua obra.
[…]
É afinal no filósofo Rousseau que Rousseau nunca quis ser que se encontra a trama sistemática de um pensamento que, de tão criador fica aquém daquilo que pensa, de tão original, se desdobra, dispersa e derrama em polissémicas direcções, como que
procurando esgotar-se e incansavelmente pensar-se até ao fim.
[…]
Filósofo “malgré tout”, há ainda um outro Rousseau de que gostaria de vos falar: um Rousseau feminino! Não se trata de proclamar que Rousseau não era afinal um homem mas uma mulher escondida sob um vestuário e pseudónimo masculinos, de anunciar a descoberta sensacional de uma personagem hermafrodita ou de revelar uma nova Georg Sand. Trata-se de interpretar diversos sinais que pontuam a obra e a vida de Rousseau, de julgar perceber a razão que os funde e a raiz que os alimenta.“
A hipótese de leitura da obra de Rousseau que é proposta por Olga Pombo conflui num conceito de alteridade que, a meu ver, vale a pena descobrir, a não ser que o preconceito nos faça desviar o olhar.